Jornal O Globo de 17-09-1980
JEAN PIAGET (1896-1980) A vida consagrada ao conhecimento GENEBRA (O GLOBO)
- O suíço Jean Piaget, conhecimento como “o pai da moderna psicologia infantil” e que morreu ontem nesta cidade, aos 84 anos, provocou uma verdadeira revolução em seu campo de conhecimento. Ele estudou cuidadosamente o desenvolvimento intelectual infantil, dividiu-o em etapas e inverteu o postulado de que a cada estímulo corresponde uma reação. Não é o estímulo que move a criança, afirmou ele: em termos pedagógicos isso significa que deve-se levar a criança a ter necessidade daquilo que se quer transmitir. Essa a revolução. Nascido em Neuchâtel, Suiça, em 1896, em cuja universidade estudou Biologia, especializando-se em Zoologia, Piaget foi nomeado em 1921 diretor do instituto de Estudos de Genebra, e mais tarde foi catedrático das universidades de Neuchâtel, Lausanne e Paris. Pouco a pouco foi se interessando primeiro pela Epistemologia e pela Lógica , e finalmente pela Psicologia, terreno em que, segundo muitas pessoas, teria exercido uma influência semelhante à de Freud, Doutor honorário de mais de 30 universidades, Piaget escreveu mais de 40 livros e um número imenso de artigos. Mas sempre foi pouco lido pelo grande público, embora tenha despertado grande interesse entre educadores, que colocaram, em todo o mundo, o nome dele à frente de experiências pedagógicas.
O pensamento: a teoria dos estágios
“Naturalista e biólogo por formação, interesso-me pelos problemas epistemológicos, sem haver realizado um estudo formal em Psicologia, e meu principal objetivo foi sempre determinar as contribuições das atividades da pessoa e os aspectos restritivos dos objetos no processo de aquisição do conhecimento”. Suas obras publicadas são mais de 300, entre livros e artigos. E inúmeros são os prêmios e honrarias que recebeu de entidades científicas de todo o mundo: a contribuição de Piaget no campo da teoria do conhecimento só é comparável em importância à que Freud deu no domínio da afetividade. Freud descobriu que as “escorregadelas” da palavra são caminhos para o inconsciente: Piaget descobriu que os “erros” mentais que as crianças cometem são pistas que levam aos processos intelectuais precursores do pensamento dos adultos. E, contradizendo radicalmente as teorias psicológicas em voga - behaviorista norte americano (comportamentismo) e reflexológica soviética, - ele dividiu o desenvolvimento intelectual infantil em estágios ou etapas, caracterizadas pela sucessiva complexidade e maior integração dos modelos de pensamento: sensório-motor, até os dois anos; pré-operacional de dois a quatro anos; intuitivo, de quatro a sete; operacional concreto, de sete a 14; e operacional abstrato, daí em diante. Os estágios - ele sempre fez questão de assinalar - não se prendem a uma faixa cronológica rígida. O importante é acompanhar a evolução do pensamento e a maneira como as crianças fazem acomodação de seus organismo ao meio-ambiente, ou modificam, com novas soluções, a estrutura que já encontram preparada. Esta é a sua “teoria de assimilação” - uma sequencia de estágios que ele vê como sendo invariavelmente universal. Feito isso, Piaget prossegue seu caminho: agora não se trata apenas de descrever o comportamento intelectual da criança, mas de desenvolver um sistema formal - um tipo de lógica - que apreendesse em forma algébrica as operações mentais das quais as crianças são capazes. O resultado foi um tratado de três volumes sobre lógica. Feito isso, Piaget prossegue seu caminho: inicia uma investigação interdisciplinar sobre a natureza e as origens de todo o pensamento, desde a história das disciplinas científicas ao exame do conhecimento científico contemporâneo. E nasce em Genebra o campo da epistemologia genética e, em seguida, o Centro Internacional de Epistemologia Genética. Epistemologia genética: os ingleses a identificam, com Bertrand Russell, com a teoria do conhecimento. O lógico André Lalande diz: “É o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das diversas ciências, com o objetivo de lhes determinar a origem lógica (não psicológica), o valor e o alcance objetivo”. Não há contradições: a epistemologia genética de Piaget é ambas as coisas, é verificar experimentalmente como e quando brotam em nós as ideias que nos servem para conhecer e interpretar a natureza e a vida. Embora Piaget não estivesse fundamentalmente interessado na pedagogia, suas teses estão sendo amplamente aplicadas no campo da educação: a educação da inteligência. Os defensores dessa concepção partem do princípio de que o indivíduo só se move quando há necessidade. E quando há necessidade ele está em desequilíbrio, já que equilíbrio seria esta necessidade satisfeita. A inteligência só se desenvolve para preencher uma necessidade. Não há estímulo: Piaget inverteu o processo. Não é o estímulo que move o indivíduo - e isso representa uma revolução. Em termos pedagógicos significaria levar a criança a ter necessidade daquilo que se quer transmitir. Essa é a chamada situação-problema, ou seja, é a criação de dificuldades que serão resolvidas pela criança. Uma das características baseadas em Piaget é a de que o professor não “ensino”; ele dá um jeito para a própria criança descobrir. Trata-se, pois, de estimular a inteligência e preparar os jovens para descobrir e inventar.
O homem: os fatos em primeiro lugar
A filosofia é uma crença. “Tenho horror de tudo o que não está ligado aos fatos”. Esta frase dita por Piaget ao completar 75 anos, é mais do que uma boutade: ela resume a sua vida de incansável pesquisador. Nascido em 9 de agosto de 1896, desde criança ele se interessava por Zoologia, fósseis e mecânica. Mas foi um pouco por acaso que, segundo a expressão do Professor Paul Fraisse, da Sorbonne, ele se transformou "no maior psicólogo do século XX" Ao mesmo tempo em que fazia seus estudos secundários, trabalhou como assistente voluntário no laboratório do Museu de História Natural de sua cidade, nessa época dirigido por um especialista em malacologia (o estudo dos moluscos), o professor Paul Godet. Quando este diretor morreu, em 1911, Piaget continuou no laboratório, chegando a publicar trabalhos, alguns editados pelo Museu de História Natural, de Genebra. Foi graças ao seu interesse pela ciência, diria mais tarde, que ele teve ""o privilégio raro de entrever a Ciência e o que ela representava antes de sofrer as crises filosóficas da adolescência." Mas o "demônio da filosofia" se apoderou dele. Através de um seu padrinho, Samuel Cornut, tomou contato com a obra de Henri Bergson principalmente com "A evolução criadora", de que recebeu influência profunda. A filosofia bergsoniana provocou em Piaget um profundo "choque intelectual" que lhe permitiria imprimir nova direção a sua formação teórica, tornando possível a conciliação entre a formação científica e as disposições especulativas. Na verdade, foi dessa filosofia que surgiu aquilo que se tornaria a meta de sua atividade cientifica: ” O problema do conhecimento propriamente dito, o problema epistemológico, apareceu-me, de repente em uma perspectiva inteiramente nova e como um tema de estudo fascinante. Isso me fez tomar a decisão de consagrar minha vida à explicação biológica do conhecimento." Em 1915 Piaget licenciou-se (não em Psicologia; este mestre jamais se diplomou na área de sua especialidade), dedicando-se depois à leitura de Kant, Herbert Spencer e Auguste Comte, e, na área da Psicologia, à de William James, Théodore Ribot e Pierre Janet. Iniciou sua formação lógica com Arnold Reymond; e tomou contato com os trabalhos de Max Wertheimer e Wolfgang Kohler, da escola gestaltista de Berlim (psicologia da Gestalt). Três anos depois obteve uma licenciatura em ciências naturais e a seguir, um doutorado com uma tese sobre os moluscos do Valais. Viajou então para Zurique, na Suíça alemã, onde se dedicou a estudar psiquiatria com Bleuler, estabelecendo também os primeiros contatos com a corrente psicanalítica, através das obras de Freud e Jung. Depois da Primeira Guerra Mundial foi para Paris (1919), entrou na Sorbonne e estudou psicopatologia com George Dumas e Psicologia com Henri Delacroix. Ao mesmo tempo fez estágio no Hospital Psiquiátrico de Saint'Anne e estudou Lógica com André Lalande e Lén Brunschwig. E em Paris que, recomendado por Théodore Simon para trabalhar no laboratório de Binet (psicologia experimental) começa a interessar-se por crianças (pesquisas com o teste de Burt em crianças parisienses e crianças deficientes mentais no hospital de La Salpetrière, onde também investigou a formação do número na criança, em colaboração com Szeminska). "Descobri com estupefação - escreveu mais tarde - que os raciocínios mais simples (...) para crianças normais até 11 anos, apresentavam dificuldades insuspeitas pelo adulto" Em 1923, Claparède o convidou para dirigir o setor de estudos do instituto Rousseau, de Genebra, dando início, então, a um estudo sistemático da inteligência. Desde 1921 Piaget ensinou Psicologia Evolutiva, Filosofia das Ciências e Sociologia, em Genebra. Em 1936 tornou- se professor de Psicologia e Sociologia da universidade de Lausanne, onde ensinou até 1951. Com a morte da Claparède, tornou-se diretor do Laboratório de Psicologia, ocupando a cátedra de Psicologia Experimental. Em 1942 lecionou no Collège de France e em 1946 recebeu o título de doutor honnoris causa pela Universidade de Paris, onde substituiu Maurice Merleau-Ponty. Em 1949 esteve no Rio, na qualidade de professor-conferencista. Em 1955, com o auxílio da Fundação Rockefeller, fundou em Genebra o Centro Internacional de Epistemologia Genética. O currículo universitário de Piaget não pode ser abrangido pelas fronteiras de uma disciplina estática: ele lecionou Filosofia, Histórias das Ciências, Sociologia, Psicologia. Mas ao completar 80 anos, o grande sábio europeu, como uma ironia erasmiana (não esquecer que ele recebeu, em 72, o prêmio Erasmo, inspirado no célebre humanista de Roterdam), observou altivamente: "Morrerei sem diplomas efetivos, levando comigo o segredo das lacunas da minha formação". Do menino de Neuchâtel, que se dedicava a reunir e a estudar moluscos ou a correr atrás de um pardal, ao ancião laureado de Genebra, 30 vezes doutor honoris causa, Piaget perseguiu, durante 75 anos de pesquisa constante, um único objetivo, que assim definiu, em 1972: "Tentar compreender e explicar o que é um desenvolvimento vivo, em sua perpétua construção de novidades e em sua adaptação progressiva à realidade.” E em páginas quase confessionais, não muito frequentes neste cientista pensador: “Fundamentalmente, sou um ansioso que só o trabalho alivia”“...) Logo que chegam as férias, eu me refugio nas regiões selvagens do Valais e escrevo durante duas semanas em mesas improvisadas depois dos passeios agradáveis. “Foi essa dissociação dentro de mim, como ser social e como homem da natureza (no qual a excitação dionisíaca termina em atividades intelectuais), que me permitiu superar um fundo permanente de ansiedade”. Piaget vivia em um bairro tranquilo de Genebra, solitário, mas não a social: participante: - Afastei-me apenas da estupidez da vida. Para esquecê-la, nada melhor do que mergulhar no trabalho. Trabalhou até a morte.
"O grande descobridor da criança"
- A morte de Piaget equivale a de Einstein ou a Freud. Piaget, como estes dois revolucionou as ciências do homem, da biologia à antropologia, influindo em etologia, economia, sociologia. Sua teoria da evolução refuta, totalmente, a teoria neodarwinista. Quem diz isto é o professor Lauro de Oliveira Lima, do Centro Experimental e Educacional Jean Piaget, que introduziu no Brasil o método de ensino piagetiano para crianças. Abalado com a notícia de sua morte ele preferiu falar ontem sobre o trabalho deixado pelo velho mestre em todo o mundo. - Já se esperava a morte de Piaget. Os discípulos e colaboradores seus que já estão chegando ao Rio para o I Congresso Brasileiro Piagetiano deixaram-no, em Genebra, hospitalizado em estado grave. Todos supunham que ele não resistiria muitos dias. Assim, começaremos o Congresso domingo, cobertos de luto. Ao justificar que Piaget foi "o grande descobridor da criança", o professor Oliveira Lima diz que depois dele "todos os que tratarem crianças mudarão, radicalmente, sobre como elas se desenvolvem". Acrescentou que "Piaget descobriu que a criança passa por estágios sucessivos e sequenciais em seu desenvolvimento e, em cada um deles, a relação deve ser diferente". - Piaget- continua ele - não é um pedagogo como todo mundo pensa. Pelo contrário: Jamais respondia perguntas relacionadas à educação das crianças. Ele achava que os educadores é que devem aplicar suas descobertas biológicas, psicológicas, sociológicas e epistemológicas em Pedagogia. É algo como os médicos, que utilizam as pesquisas dos biólogos ou químicos. Piaget é autor difícil e, por isso pouco assimilado pelos seus leitores e pouco ensinado nas faculdades. Uma vez, ao explicar a Einstein com as crianças compreendiam a velocidade e simu???, Piaget ouviu dele que a psicologia era mais difícil que a física. L. Oliveira Lima acrescentou ainda que Piaget "mostrou que a criança não entende a ação dos números se não dominar, perfeitamente, as noções de classificação, criação e de correspondência". Isto, segundo ele, obriga aos "fazedores de diagramas a estudarem epistemologia genética ou filiação das estruturas científicas". - Não vai ser o conselho de educação - concluiu o professor - que fará programas, mas os grandes cientistas. Piaget morre, mas deixa seus discípulos em todos os grandes centros de pesquisa e universidades do mundo.
Chiarottino: "A natureza do homem desvendada".
SAO PAULO (O GLOBO) Ainda emocionada com a notícia da morte de Jean Piaget, a professora Zélla Ramozzi Chiarottino, autora do livro "Piaget: modelo e estrutura"e professora de Linguagem e Pensamento no instituto de Psicologia da USP, falou sobre a importância do filósofo suíço: Dizem que no nosso século houve uma verdadeira mudança na "episteme", Isto é, no conhecimento do mundo físico e social em que vivemos. Hoje, esta "episteme" é fundamentalmente biológica, pois somente agora começamos a compreender o significado mais profundo do organismo humano. E, Justamente os estudos do Piaget - a essência de seu pensamento está na obra "Biologia e conhecimento"- foram fundamentais na construção desta nova concepção. Há 20 anos, quando ainda era estudante de Filosofia, a professora Zélia começou a estudar a teoria do Piaget. Ela conta que seu interesse foi despertado pelo fato de ele partir da problemática do filósofo Kant, mias sempre tentando resolver os problemas filosóficos a partir da ciência contemporânea, principalmente a Biologia. - Piaget foi um grande filósofo, biólogo e epistemólogo. O principal objetivo de sua obra talvez tenha sido justamente explicar a natureza humana, mostrando as relações que existem entre o homem orgânico e o homem como animal simbólico. Isto é, o ser humano que vive numa sociedade estruturada sobre símbolos, como a linguagem por exemplo. - O grande interesse de sua obra é a epistemologia, ou seja, a reflexão sobre a capacidade que o ser humano tem de conhecer o mundo em que ele vive. Mas, além deste aspecto filosófico, também existe em sua obra uma imensa contribuição para a prática. Sua obra possibilita, por exemplo, a reeducação de crianças com distúrbios de linguagem e audição.
Nas escolas do Estado, um teste que se afirma.
Fátima Cunha, diretora do Laboratório de Currículos da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, falou ontem ao GLOBO a respeito das experiências desenvolvidas pela Secretaria a partir das teorias de Jean Piaget: - Trata-se de uma proposta curricular de caráter experimental. Cinco escolas em cada município (os "municípios-pólos", como os chamaríamos) obedecem a um currículo baseado nas experiências de Piaget, desde a fase da estruturação administrativa até o momento final da alfabetização, Neste trabalho, já dispomos de pessoal especializado, formado, pela Secretaria, que se junta ao material humano disponível nas escolas escolhidas, e que serve de apoio ao trabalho. Além da formação de pessoal especializado e atualizado no pensamento de Piaget, nos valemos ainda de documentos históricos e da publicação dos "Cadernos Pedagógicos", para uso dos professores. Além, é claro, da capacidade criativa, da improvisação de alunos e mestres. - Com esta experiência em andamento, já seria tempo de fazer uma avaliação? Tais técnicas teriam dado certo? - Acreditamos que sim, embora tudo ande a meio caminho, Afinal, não é todo o Estado a recebe tal técnica de ensino. Nossa ação sé restringe, repito, a poucos e determinados públicos. Sempre sem nos afastarmos do caráter essencialmente experimental. Mas pelo que estamos vendo , com a ??? formação de know-how e a motivação de que valem alunos e professores, achamos que deu certo a experiência. Com o tempo, as ideias de Jean Piaget serão uma realidade educacional no Brasil.
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